domingo, 25 de dezembro de 2011

Lars Von Trier: o maior artista vivo



Em entrevista publicada na edição de VEJA de 7 de setembro de 2011, o diretor só faz confirmar a minha absoluta certeza de que é o maior artista do século XXI.

“A depressão é o fim do mundo”
Expulso do Festival de Cannes por dizer que “entendia Hitler”, em uma piada de mau gosto, o diretor dinamarquês dá, com o belíssimo Melancolia, a melhor resposta possível à celeuma.
Afável, animado, bem-humorado: sim, esse é o diretor Lars von Trier dando entrevista. Em maio passado, Von Trier protagonizou uma das maiores celeumas da história do Festival de Cannes ao afirmar, durante uma entrevista coletiva, que “entendia Hitler”.
Pediu desculpas pela piada péssima, mas foi expulso do evento, declarado persona non grata no festival e voltou para casa (de carro, porque tem pavor de avião) com a pecha de monstro. Um dos fundadores do movimento Dogma e autor de obras-primas como Os Idiotas, Dançando no Escuro e Dogville, esse dinamarquês de 55 anos tem uma longa reputação como um entrevistado provocador, que gosta de chocar. (Um exemplo mais antigo, e clássico: “Sou a favor da pornografia. Pornografia é mostrar as coisas como elas são”.) Mas tem também uma longa história como um cineasta de honestidade irredutível, que denuncia de maneira invariavelmente controversa a burrice do consenso, o germe fascista que existe em cada indivíduo e a propensão humana a tiranizar.

De anos para cá, porém, com Anticristo e agora com o belíssimo Melancolia, o cinema de Von Trier se virou para seu interior. Ansioso desde sempre e depressivo crônico desde que sua mãe lhe revelou, no leito de morte, que ele não era filho do homem que sempre acreditara ser seu pai – e que já falecera, deixando-o sem nenhum protagonista com quem tirar a limpo sua história -, ele faz, com Melancolia, uma parábola pungente do fim do mundo que cada ser humano terá de viver com sua própria morte.
A seguir, trechos da entrevista que Von Trier concedeu a VEJA, de Copenhague.
O que levou o senhor a agir daquela maneira na coletiva em Cannes?
Quando dou uma entrevista, aquilo que você vê é o que você leva. Não faço um número, envergo uma atitude ou invento uma persona. Eu digo o que penso e me comporto como sou. Nesse sentido, tendo a ser um elemento estranho no meio cinematográfico – e talvez também intrigante o suficiente para que os espectadores tentem me procurar dentro dos meus filmes, o que é bom.
Eu poderia dizer só coisas diplomáticas e ensaiadas, como a maioria faz. Mas isso me tornaria um homem opaco. Só que em coletivas, particularmente, o meu lado provocativo tende a vir à tona. É o ambiente, a excitação, não sei.
Portanto, embora minha piada com “compreender Hitler” seja péssima, é isso que ela era, uma piada. E é isso que eu sou, um sujeito que diz as coisas que lhe vêm à cabeça – que podem ser razoáveis ou de mau gosto, como essa.
O senhor se surpreendeu quando a frase, que tinha uma dimensão óbvia de ridículo, foi levada a sério – e arrepende-se de ter aniquilado as chances de Melancolia vencer o festival?


O senhor não está falando sério, está?
Mas veja que esperteza a minha: levo para Cannes um filme que, na minha opinião, não é bom o bastante para ganhar a Palma de Ouro. Então, na coletiva, saco da manga essa carta do nazismo. Todos ficam contra mim. Kirsten Dunst leva o prêmio de melhor atriz, mas o filme mesmo sai de mãos abanando – só porque, especulam alguns, eu o prejudiquei irremediavelmente com minha falastrice. De outra forma, ele teria levado a Palma. Enganei todo mundo.
Não, não estou, mas se fosse um plano seria um ótimo plano. Veja, se eu não conheço os filmes de um diretor e o ouço dizendo que é nazista, vou ficar horrorizado também. Por isso, toda vez que vou a Cannes, imploro para não ter de fazer a coletiva, porque sempre acabo falando besteira. Neste ano, pedi de novo, e de novo eles me obrigaram a fazê-la. Deu no que deu.
Enquanto isso, Terrence Malick, que se professa um recluso, foi gentilmente desobrigado de dar a entrevista pela direção do festival. Não estou dizendo que é por isso que ele ganhou a Palma de Ouro comA Árvore da Vida, mas essa discrepância no tratamento é injusta.
Com Anticristo e Melancolia, seu cinema se tornou radicalmente introspectivo em relação a, digamos, Dançando no Escuro ouDogville. O que aconteceu?
Venho usando as experiências que atravessei na vida – em particular a ansiedade e a depressão. Do meu ponto de vista, Anticristo eMelancolia são dois dos meus filmes mais superficiais. Vindo de dentro de mim, ou sendo eu a matéria-prima deles, eles foram fáceis até demais de fazer; não tive de construir nada para eles. Quase tenho vergonha do prazer que senti ao fazer Melancolia – esse é o fardo de ser protestante; quando algo é fácil, não tem valor.
Mas é fato que esse filme veio de um lugar muito puro do meu coração. Nunca conheci Ingmar Bergman pessoalmente, mas um dia, por qualquer razão, ele fez um comentário a meu respeito em uma entrevista – disse que, quando eu começasse a usar a mim mesmo em meus filmes, então talvez ele passasse a me considerar digno de alguma atenção como cineasta.
Em Melancolia, o senhor simpatiza com o sentimento de Claire, a personagem que se desespera quando fica patente que o mundo vai acabar. Mas é com a depressiva Justine, que encara o fim do mundo com serenidade, como uma libertação, que o senhor se irmana. Em sua opinião, estaríamos então melhor, como indivíduos, se simplesmente parássemos de brigar com a ideia de que estamos sós e rumando para nosso fim?
Acho que a vida é uma ideia muito ruim. Se essa ideia partiu de Deus, eu o culpo por tê-la largado no meio do caminho, sem levá-la à sua conclusão lógica.
Imagine uma criança que ganha um trem de brinquedo e o põe para funcionar; ele corre nos trilhos uma dezena de vezes, a criança se diverte, e então perde o interesse. O que acontece com o trem depois que a criança o larga? Isso, para mim, é a vida: se Deus a criou – e eu não acredito Nele, mas vamos supor que exista -, Ele logo a largou, correndo por aí, sem um pensamento para o fato de que criou seres que sabem que cada passo deles na Terra causa o sofrimento de uma planta, um animal ou um outro homem, e que têm de enfrentar a consciência de que sua existência é finita. Isso é nascer sob uma sentença de morte.
Se eu fosse um bicho, sem noção de que vou morrer e de que posso magoar os outros o tempo todo, sem culpa de espécie alguma e ocupado apenas em comer, excretar e me reproduzir, então a vida poderia ser tolerável. Mas não da maneira como ela é para os homens. Não é justo. Se antes de eu nascer me consultassem sobre se eu quero existir neste mundo, eu diria não – absolutamente não.
Em Anticristo, uma mulher perde o filho pequeno, que cai da janela da casa, porque mesmo vendo que ele está fora do berço ela não interrompe o sexo com o marido para colocá-lo de volta na cama em segurança – e então entra em um transe de desespero, claro. A intenção seria em parte punir as mulheres por trazerem mais seres ao mundo?
Mas a personagem não é uma mulher no sentido exemplar: ela sou eu. Bolei um truque muito esperto. O que faço é escrever um filme sobre mim, dividindo-me em dois personagens masculinos. Daí escrevo vários papéis femininos – todos de mulheres que são idiotas, idealistas ou covardes. Clichês, enfim. Mas, na hora de começar a rodar, inverto os papéis: os masculinos se tornam femininos, e vice-versa.
Porque os homens de hoje são tão acovardados que, se eles aparecerem como tal num filme, ninguém vai achar que isso é um clichê e criticar. Parece realista, e pronto. Entretanto, se eu colocasse uma mulher estúpida ou covarde como protagonista, a gritaria viria na hora. Para não dizer que, sendo homem, eu não seria capaz de criar do zero uma protagonista feminina completa. Então uso a esperteza, escrevendo de um jeito e filmando do outro. Ou seja, quando me acusam de misógino porque submeto minhas personagens femininas a sofrimentos e humilhações, estão, na prática, acusando-me de detestar a mim mesmo, já que elas são eu, um homem.
Ainda em Anticristo, o pai da criança morta é psicoterapeuta, mas erra drasticamente nas tentativas de tirar sua mulher do luto. Essa é sua opinião pessoal sobre a psiquiatria, de que ela é incapaz de compreender e sanar o sofrimento psíquico?
Passei horas sem fim em consultas com psicólogos e psiquiatras, e é claro que estou zombando deles. O que um terapeuta tipicamente diria a um paciente na situação da mãe de Anticristo é que a ansiedade não é perigosa; eu fiz o filme para dizer que, sim, a ansiedade é perigosa. A uma pessoa na situação de Justine em Melancolia, eles diriam: a depressão não é o fim do mundo. Eu fiz o filme para dizer que, sim, a depressão é o fim do mundo.
O que deflagrou a sua depressão?
A vida toda sofri de ansiedade, e minha mãe também. Acho que realmente há um componente hereditário aí. Não que eu culpe minha mãe por tê-la transmitido a mim – e essa é uma das poucas coisas pelas quais não a culpo.
Mas a depressão veio com o anúncio já célebre que ela fez no leito de morte: dois dias antes de morrer, cheia de tubos, ela me revelou que meu pai não era meu pai, e que eu era filho de um homem com quem ela tivera um longo caso. Foi a última vez em que pudemos conversar. Logo a seguir, ela já não podia mais se comunicar. Uma mentira de uma vida inteira, e nenhuma chance de sequer discuti-la, ou de brigar por causa dela. A depressão se instalou e nunca mais me abandonou verdadeiramente.
O senhor tem a reputação de ser um cineasta manipulador, cruel até, com seus atores, e em particular com suas atrizes. Mas não é essa a definição do trabalho de um diretor de cinema – manipular?
Eu trato meus atores e atrizes da maneira como gostaria de ser tratado. Você até pode tentar – e conseguir – enganar um ator, suavizar os fatos para ele, mas vai terminar com uma droga de filme. Se estamos naquele set trabalhando em prol de uma finalidade comum a todos nós, é preciso usar de honestidade.
Sei que muito dessa reputação vem das declarações de Björk sobre as filmagens de Dançando no Escuro, nas quais ela usou expressões como “estupro emocional”. É fato que Björk não queria fazer o filme; todo dia, inclusive, ela dizia que não voltaria no dia seguinte. Mas devo dizer que acho que ela fez um trabalho fantástico. Com todos os outros atores e atrizes com que trabalhei, porém, acreditei sinceramente estar em uma colaboração. Do fundo do meu coração.
Que lição o senhor tirou da experiência em Cannes – além da óbvia, de não dar mais coletivas de imprensa?
Essas, não darei mesmo. Chega. Mas acho que o episódio é correlato à minha história familiar: quando minha mãe me contou que meu pai era só um padrasto, enlouqueci, e caí em uma ânsia descontrolada de saber tudo sobre essa família que eu não conhecia. Mas, passada essa instabilidade inicial, as ideias se aclararam: é evidente que meu pai não era o homem que forneceu o esperma, e sim o homem que me deu seu amor durante toda a vida.
Algo similar se passou em Cannes. Comecei com uma piada ruim que foi ficando cada vez pior e atiçando assim o meu destempero – especialmente porque meu pai, o que me criou, era judeu, e eu me sinto muito judeu também. Ou seja, a reação séria à piada começou ela própria a me ferir: como alguém poderia crer que eu de fato seria capaz de nutrir qualquer tolerância para com o nazismo? Mas qual a saída, tolher-me sempre que sentir que estou para fazer uma provocação? Eu então já não seria eu mesmo.
A principal lição que tirei do episódio seria esta: tenho de ser quem sou e arcar com as consequências do que digo. Não sou nazista – portanto, se é que o raciocínio não parece tortuoso demais, devo e posso arcar com as consequências de ter dito que era nazista. Nos dias seguintes à coletiva em Cannes, escreveram páginas e páginas de coisas horrendas a meu respeito aqui na Dinamarca. Até que chegou a hora em que dei de ombros. Se não querem entender, paciência. Eu não vou mudar. Até poderia mudar – mas daí teria de deixar de fazer filmes e passar a vida me ocupando só disso, de tentar ser outra pessoa. Vou citar Marilyn Monroe: se você não aguenta o meu pior, não merece o meu melhor.
Qual será seu próximo filme?
Vai se chamar Ninfomaníaca.
E do que trata?
De uma ninfomaníaca, ora, e de sua trajetória erótica. Prevejo que mulheres de todos os cantos do mundo vão querer me estrangular.
e mais boas críticas sobre o filme:

http://pipocamoderna.com.br/melancolia-eleva-simbolismo-de-lars-von-trier-a-proporcoes-epicas/
http://www.salon.com/2011/11/23/is_melancholia_a_feminist_film/

http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/diversao/2011/08/04/281288-critica-em-melancolia-lars-von-trier-discute-rituais-e-medos-na-iminencia-do-fim-do-mundo#0




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