Mas veja que esperteza a minha: levo para Cannes um filme que, na minha opinião, não é bom o bastante para ganhar a Palma de Ouro. Então, na coletiva, saco da manga essa carta do nazismo. Todos ficam contra mim. Kirsten Dunst leva o prêmio de melhor atriz, mas o filme mesmo sai de mãos abanando – só porque, especulam alguns, eu o prejudiquei irremediavelmente com minha falastrice. De outra forma, ele teria levado a Palma. Enganei todo mundo.
Não, não estou, mas se fosse um plano seria um ótimo plano. Veja, se eu não conheço os filmes de um diretor e o ouço dizendo que é nazista, vou ficar horrorizado também. Por isso, toda vez que vou a Cannes, imploro para não ter de fazer a coletiva, porque sempre acabo falando besteira. Neste ano, pedi de novo, e de novo eles me obrigaram a fazê-la. Deu no que deu.
Enquanto isso, Terrence Malick, que se professa um recluso, foi gentilmente desobrigado de dar a entrevista pela direção do festival. Não estou dizendo que é por isso que ele ganhou a Palma de Ouro comA Árvore da Vida, mas essa discrepância no tratamento é injusta.
Com Anticristo e Melancolia, seu cinema se tornou radicalmente introspectivo em relação a, digamos, Dançando no Escuro ouDogville. O que aconteceu?
Venho usando as experiências que atravessei na vida – em particular a ansiedade e a depressão. Do meu ponto de vista, Anticristo eMelancolia são dois dos meus filmes mais superficiais. Vindo de dentro de mim, ou sendo eu a matéria-prima deles, eles foram fáceis até demais de fazer; não tive de construir nada para eles. Quase tenho vergonha do prazer que senti ao fazer Melancolia – esse é o fardo de ser protestante; quando algo é fácil, não tem valor.
Mas é fato que esse filme veio de um lugar muito puro do meu coração. Nunca conheci Ingmar Bergman pessoalmente, mas um dia, por qualquer razão, ele fez um comentário a meu respeito em uma entrevista – disse que, quando eu começasse a usar a mim mesmo em meus filmes, então talvez ele passasse a me considerar digno de alguma atenção como cineasta.
Em Melancolia, o senhor simpatiza com o sentimento de Claire, a personagem que se desespera quando fica patente que o mundo vai acabar. Mas é com a depressiva Justine, que encara o fim do mundo com serenidade, como uma libertação, que o senhor se irmana. Em sua opinião, estaríamos então melhor, como indivíduos, se simplesmente parássemos de brigar com a ideia de que estamos sós e rumando para nosso fim?
Acho que a vida é uma ideia muito ruim. Se essa ideia partiu de Deus, eu o culpo por tê-la largado no meio do caminho, sem levá-la à sua conclusão lógica.
Imagine uma criança que ganha um trem de brinquedo e o põe para funcionar; ele corre nos trilhos uma dezena de vezes, a criança se diverte, e então perde o interesse. O que acontece com o trem depois que a criança o larga? Isso, para mim, é a vida: se Deus a criou – e eu não acredito Nele, mas vamos supor que exista -, Ele logo a largou, correndo por aí, sem um pensamento para o fato de que criou seres que sabem que cada passo deles na Terra causa o sofrimento de uma planta, um animal ou um outro homem, e que têm de enfrentar a consciência de que sua existência é finita. Isso é nascer sob uma sentença de morte.
Se eu fosse um bicho, sem noção de que vou morrer e de que posso magoar os outros o tempo todo, sem culpa de espécie alguma e ocupado apenas em comer, excretar e me reproduzir, então a vida poderia ser tolerável. Mas não da maneira como ela é para os homens. Não é justo. Se antes de eu nascer me consultassem sobre se eu quero existir neste mundo, eu diria não – absolutamente não.
Em Anticristo, uma mulher perde o filho pequeno, que cai da janela da casa, porque mesmo vendo que ele está fora do berço ela não interrompe o sexo com o marido para colocá-lo de volta na cama em segurança – e então entra em um transe de desespero, claro. A intenção seria em parte punir as mulheres por trazerem mais seres ao mundo?
Mas a personagem não é uma mulher no sentido exemplar: ela sou eu. Bolei um truque muito esperto. O que faço é escrever um filme sobre mim, dividindo-me em dois personagens masculinos. Daí escrevo vários papéis femininos – todos de mulheres que são idiotas, idealistas ou covardes. Clichês, enfim. Mas, na hora de começar a rodar, inverto os papéis: os masculinos se tornam femininos, e vice-versa.
Porque os homens de hoje são tão acovardados que, se eles aparecerem como tal num filme, ninguém vai achar que isso é um clichê e criticar. Parece realista, e pronto. Entretanto, se eu colocasse uma mulher estúpida ou covarde como protagonista, a gritaria viria na hora. Para não dizer que, sendo homem, eu não seria capaz de criar do zero uma protagonista feminina completa. Então uso a esperteza, escrevendo de um jeito e filmando do outro. Ou seja, quando me acusam de misógino porque submeto minhas personagens femininas a sofrimentos e humilhações, estão, na prática, acusando-me de detestar a mim mesmo, já que elas são eu, um homem.
Ainda em Anticristo, o pai da criança morta é psicoterapeuta, mas erra drasticamente nas tentativas de tirar sua mulher do luto. Essa é sua opinião pessoal sobre a psiquiatria, de que ela é incapaz de compreender e sanar o sofrimento psíquico?
Passei horas sem fim em consultas com psicólogos e psiquiatras, e é claro que estou zombando deles. O que um terapeuta tipicamente diria a um paciente na situação da mãe de Anticristo é que a ansiedade não é perigosa; eu fiz o filme para dizer que, sim, a ansiedade é perigosa. A uma pessoa na situação de Justine em Melancolia, eles diriam: a depressão não é o fim do mundo. Eu fiz o filme para dizer que, sim, a depressão é o fim do mundo.
O que deflagrou a sua depressão?
A vida toda sofri de ansiedade, e minha mãe também. Acho que realmente há um componente hereditário aí. Não que eu culpe minha mãe por tê-la transmitido a mim – e essa é uma das poucas coisas pelas quais não a culpo.
Mas a depressão veio com o anúncio já célebre que ela fez no leito de morte: dois dias antes de morrer, cheia de tubos, ela me revelou que meu pai não era meu pai, e que eu era filho de um homem com quem ela tivera um longo caso. Foi a última vez em que pudemos conversar. Logo a seguir, ela já não podia mais se comunicar. Uma mentira de uma vida inteira, e nenhuma chance de sequer discuti-la, ou de brigar por causa dela. A depressão se instalou e nunca mais me abandonou verdadeiramente.
O senhor tem a reputação de ser um cineasta manipulador, cruel até, com seus atores, e em particular com suas atrizes. Mas não é essa a definição do trabalho de um diretor de cinema – manipular?
Eu trato meus atores e atrizes da maneira como gostaria de ser tratado. Você até pode tentar – e conseguir – enganar um ator, suavizar os fatos para ele, mas vai terminar com uma droga de filme. Se estamos naquele set trabalhando em prol de uma finalidade comum a todos nós, é preciso usar de honestidade.
Sei que muito dessa reputação vem das declarações de Björk sobre as filmagens de Dançando no Escuro, nas quais ela usou expressões como “estupro emocional”. É fato que Björk não queria fazer o filme; todo dia, inclusive, ela dizia que não voltaria no dia seguinte. Mas devo dizer que acho que ela fez um trabalho fantástico. Com todos os outros atores e atrizes com que trabalhei, porém, acreditei sinceramente estar em uma colaboração. Do fundo do meu coração.
Que lição o senhor tirou da experiência em Cannes – além da óbvia, de não dar mais coletivas de imprensa?
Essas, não darei mesmo. Chega. Mas acho que o episódio é correlato à minha história familiar: quando minha mãe me contou que meu pai era só um padrasto, enlouqueci, e caí em uma ânsia descontrolada de saber tudo sobre essa família que eu não conhecia. Mas, passada essa instabilidade inicial, as ideias se aclararam: é evidente que meu pai não era o homem que forneceu o esperma, e sim o homem que me deu seu amor durante toda a vida.
Algo similar se passou em Cannes. Comecei com uma piada ruim que foi ficando cada vez pior e atiçando assim o meu destempero – especialmente porque meu pai, o que me criou, era judeu, e eu me sinto muito judeu também. Ou seja, a reação séria à piada começou ela própria a me ferir: como alguém poderia crer que eu de fato seria capaz de nutrir qualquer tolerância para com o nazismo? Mas qual a saída, tolher-me sempre que sentir que estou para fazer uma provocação? Eu então já não seria eu mesmo.
A principal lição que tirei do episódio seria esta: tenho de ser quem sou e arcar com as consequências do que digo. Não sou nazista – portanto, se é que o raciocínio não parece tortuoso demais, devo e posso arcar com as consequências de ter dito que era nazista. Nos dias seguintes à coletiva em Cannes, escreveram páginas e páginas de coisas horrendas a meu respeito aqui na Dinamarca. Até que chegou a hora em que dei de ombros. Se não querem entender, paciência. Eu não vou mudar. Até poderia mudar – mas daí teria de deixar de fazer filmes e passar a vida me ocupando só disso, de tentar ser outra pessoa. Vou citar Marilyn Monroe: se você não aguenta o meu pior, não merece o meu melhor.
Qual será seu próximo filme?
Vai se chamar Ninfomaníaca.
E do que trata?
De uma ninfomaníaca, ora, e de sua trajetória erótica. Prevejo que mulheres de todos os cantos do mundo vão querer me estrangular.
e mais boas críticas sobre o filme:
http://pipocamoderna.com.br/melancolia-eleva-simbolismo-de-lars-von-trier-a-proporcoes-epicas/
http://www.salon.com/2011/11/23/is_melancholia_a_feminist_film/
http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/diversao/2011/08/04/281288-critica-em-melancolia-lars-von-trier-discute-rituais-e-medos-na-iminencia-do-fim-do-mundo#0